Suplemento - EDITORA LILIUM, LDA

Thursday, January 29, 2004

Ficção neo-imoralista – CÉU CINZENTO – Rogério de Sá - XXXV e XXXVI

XXXV
«Quando nós vamos ambos, de mãos dadas,
Colher nos vales lírios e boninas,
E galgamos dum fôlego as colinas
Dos rocios da noite inda orvalhadas...»
Tinha começado a ler este poema escrito por homem que se matou e mais uma vez senti uma forte dor no coração ao evocar a Manuela. Interrompi a leitura e passeei agitado, viajando às voltas na cela. Queria correr, saltar, viajar no tempo, recuar umas semanas. Que coisa o tempo, como muda e faz mudar as nossas vidas.
Naquele dia custava-me imenso enfrentar a realidade, dolorosamente opressiva.
Durante a noite sonhara que a Manuela me viera visitar, dando-me coragem para aguardar um veredicto justo, que me restituísse a liberdade perdida. Mas acordei gelado, sem grande vontade de viver, tal como o homem que diziam eu ter assassinado. E também como o poeta que lutara inutilmente por uma sociedade mais justa, numa época de supremas desigualdades, tal como a nossa, até perder mesmo a vontade de viver.
A viagem à volta da cama prosseguia a um ritmo cada vez mais veloz, com a rapidez do possível. As paredes da cela não me deixavam ir mais depressa nem ir mais longe. Mais concretamente lembrei-me das planícies que manietam os trabalhadores agrícolas e abrem aos protegidos dos deuses as portas do poder e da posse da terra.
Continuei a passear esmagado pelas paredes da cela, imaginando teias invisíveis que bloqueavam o presente e o futuro dos semeadores de trigos amarelos.
Tal como eu eles podiam andar, mas sempre às voltas, retornando ao estatuto de pobres e humilhados, vendo os protegidos pela ordem estabelecida nos seus esplendorosos automóveis, assim como eu via passar os aviões através das grades da prisão.
Era injusta a minha detenção, eu bem o sabia e eram injustas as leis que obrigavam os trabalhadores da planície a cumprir as ordens dos deuses que os obrigavam a ser oprimidos pelos seus protegidos.
Prosseguia intranquila viagem à volta da cela revivendo o passado recente e sonhando com um futuro melhor que este sufocantemente opressivo presente. Mas viria mesmo esse futuro? Não seria uma esperança vã?
A vida não sorria a todos, o que me custava era ver aqueles a quem sorria só prque exploravam a vida de outros. Seria possível conciliar os interesses dos que se curvavam sob o sol saariano do Verão da planície ondulante com os daqueles que graças aos curvados mergulhavam nas piscinas ali perto? A liberdade de uns era a liberdade dos outros?
Não sei se estava a ser realista, os muros da prisão abalavam o meu ser, assim como a morte da Manuela me deitara por terra. Mas nem squer se pode sonhar com um mundo menos desigualitário, mais justo?
De novo fixei os olhos em palavras do poeta que se tinha suicidado:
«Sonhei – nem sempre o sonho é coisa vã - ».

XXXVI
Outras notícias.
- Filipinha vamos à festa da 11ª união de facto da Letícia?
- Claro que sim.
- Tens a certeza que é a décima primeira?
- Se contar o casamento na Igreja, mais o outro casamento só no Registo Civil faz 2+9!
- Vou guardar a máquina de calcular, acho que fizeste bem as contas.
- Onde é?
- Na Quinta da Felicidade.
- Bonito nome.
- Entra para o jeep. Vamos devagar para podermos contemplar bem a paisagem.
- Ar puro, tudo muito ecológico. Aqui não há poluição, se esquecermos a do motor do jeep.
- Que árvores tão giras, tão verdes e fáceis de subir
- Vamos parar.
- Sabes Alfredo, apetece-me fazer uma coisa muito especial. Depende das tuas capacidades.
- Diz lá!
- Vamos fazer amor em cima duma árvore.
- Podemos cair.
- Não tenhas medo pá! O Marquês das Oliveiras anda sempre a dizer que devemos recordar os nossos antepassados. Só que a minha recordação recua mais no tempo que a dele!
- Vamos então subir esta árvore.
- Cuidado Alfredo, sobe devagar para não te magoares. Eu vou atrás de ti.
- Aproxima-te Filipinha.
- Aqui estou meu querido.
- Meu amor! É muito melhor do que eu pensava! Sabe tão bem, és uma mulher maravilhosa.
- Olha as verdes folhas, o céu tão azul. E esta suave brisa toca uma deliciosa música de fundo!
- Foi tão bom!
- Vamos descer com cuidado meu amor.
- Agora para a festa.
- Olha o portão verde da Quinta da Felicidade
- Vamos comer primeiro, precisamos de recuperar forças.
- Não esqueças que o protocolo é rigoroso. Vamos para um salão muito bem aquecido e sentamo-nos à mesa todos nus. As empregadas de mesa só trazem no corpo umas botas altas, nada mais.
- A Letícia é uma grande naturista!